FaCanela, calcanhar e planta do pé são as maiores vítimas do
impacto que ocorre na corrida –e não os joelhos, tão lembrados quando se fala em
lesão de atletas.
É o que revela estudo pioneiro da Universidade Cidade de São Paulo publicado na “Sports Medicine”, da Nova Zelândia, revista que lidera o ranking internacional de publicações sobre ciência do esporte feito pelo “Journal Citation Reports”.
Para chegar a esse resultado, os pesquisadores analisaram 2.924 artigos. “Revisamos todas as pesquisas que descreveram as principais lesões em corredores”, diz Alexandre Dias Lopes, fisioterapeuta, professor da Unicid e coordenador de um grupo de pesquisas sobre o tema.
No final da peneira científica, que descartou textos redundantes ou com definições insuficientes, só oito estudos foram considerados. No total, acompanharam 3.500 corredores e constataram 28 tipos de lesão. As três principais são: síndrome do estresse medial da tíbia (canelite), tendinopatia de Aquiles (tendinopatia do calcâneo) e fascite plantar.

“Não dá para dizer qual é a
principal. Essas três são as mais comuns”, diz Lopes, que supervisionou o estudo
conduzido pelo mestrando Luiz Carlos Hespanhol Júnior.
Nos consultórios, também são as campeãs, diz Jomar Souza, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte
São lesões causadas por sobrecarga, nenhuma é traumática (tipo pisar num buraco). Diferentemente do futebol, que machuca por macrotrauma, a corrida causa lesões por microtrauma de repetição. “Alguma estrutura biológica não aguenta o estresse e sofre inflamação”, diz Lopes.
Márcio Freitas, especialista em pé e tornozelo, acrescenta: “A causa principal dessas patologias é o excesso de treino, com pouco tempo de recuperação dos tecidos [osso, tendão, músculo]“.
Rogério Teixeira da Silva, ortopedista e coordenador do Núcleo de Estudos em Esportes e Ortopedia, bate na mesma tecla: “Uma das causas mais comuns de sobrecargas ósseas e de tendão é o músculo não estar forte o suficiente para suportar os treinos; no caso da fascite plantar e nas tendinites de joelho e de Aquiles, o encurtamento muscular também é uma causa importante”.
Quando a advogada Cinthia Andrade, 35, sentiu pontadas no meio da canela, achou que era cansaço.
Os sintomas surgiam nos treinos e eram amenizados quando ela, que corre há seis anos, reduzia a intensidade ou caminhava. Com o tempo, a dor passou a prejudicar seu desempenho.
“Em maio, numa prova de 10 km, tive de caminhar a partir do km 6. Em setembro, participei de outra e tive de caminhar já no km 3. Fico chateada porque estou preparada, mas não consigo desenvolver por causa da dor.”
Sem nunca ter deixado de treinar “”corrida até quatro vezes por semana mais bicicleta ao menos um dia–, resolveu enfim ir ao médico.
O exame indicou canelite nas duas pernas. Agora, ela começa nova etapa: fisioterapia, fortalecimento muscular, aplicação de gelo e redução do volume de treinos. Os resultados devem aparecer em um mês e meio.
A advogada quer acabar com a dor logo e se preparar para a São Silvestre, principal prova de rua do país.”Vou correr de qualquer jeito!”
Menos, Menos
O tratamento, pelo menos num
primeiro momento, é sempre a redução do treinamento, tanto em volume
(quilômetros rodados por semana) quanto em intensidade (ritmo). Há situações em
que o corredor deve mesmo interromper seus treinos. E precisa tomar outras
medidas.
“Além de fisioterapia, o paciente deve seguir um programa específico de treinamento, envolvendo alongamento e fortalecimento muscular. Como terapia complementar, a acupuntura, o RPG e a quiropraxia podem ser utilizados”, diz Moisés Cohen, diretor do Instituto Cohen de Ortopedia, Reabilitação e Medicina do Esporte.
Os resultados dependem da paciência da pessoa, nem sempre disposta a abrir mão de seu esporte, constata Freitas: “Nós, que tratamos corredores, ficamos muitas vezes de mãos atadas, pois essas lesões requerem um tempo de tratamento, o que não é aceito por eles e, muitas vezes, não temos tecnologia para abreviar esse tempo, que é determinado pela biologia, não pela opinião médica”.
Corredor deve evitar exagero para diminuir os riscos
A julgar pelas estatísticas, pelo
menos metade dos corredores vai sofrer lesões relacionadas ao esporte em algum
momento da vida.
Duas das maiores pesquisas citadas no trabalho de revisão coordenado pelo fisioterapeuta Alexandre Lopes mostram que 46% dos participantes de maratonas já se machucaram.
Para reduzir o risco de desenvolver patologias em consequência do hábito da corrida, os médicos consultados pela Folha recomendam algumas medidas.
“Aumentar os treinos (volume, frequência, intensidade) de maneira gradual e progressiva, realizar exercícios de fortalecimento muscular duas a três vezes por semana e fazer alongamentos” são algumas das indicações do médico Jomar Souza, da Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte.
Reduzir o peso corporal e usar “calçados adequados” também são fatores que podem diminuir o risco de lesões, segundo o ortopedista Moisés Cohen.
O tênis certo
O também ortopedista Márcio Freitas
é mais específico: “A correção biomecânica dos eixos de força dos membros
inferiores, com palmilhas e tênis adequados, é importante fator de prevenção; já
o alongamento do pé e da panturrilha ajuda a evitar a fascite
plantar”.
Freitas também recomenda, para evitar o impacto excessivo, o uso de tênis de amortecimento e de calcanheiras de silicone –além da alternância dos tipos de terreno da corrida.
O corredor deve, ainda, evitar o exagero nos treinos de “tiros” [corridas curtas em ritmo intenso] e não se apoiar demais no antepé, já que esses fatores aumentam a tensão na origem da fáscia plantar.
‘Desisti do tratamento, mas não de competir’, diz consultor de informática
Somente oito meses depois de ter
sentido pela primeira vez uma pontada forte no calcanhar, o consultor de
informática Elton Mendes de Souza, 53, foi ao médico.
“No treino, o tendão calcâneo esquerdo começou a doer. Sabia que era alguma coisa no tendão de Aquiles, mas achei que ia passar”, lembra.
O consultor Elton Mendes de Souza,
que machucou os tendões, na academia onde treina, em São Paulo. Foto: Lucas
Lima/Folhapress
Isso foi no início do ano passado. Apesar da dor, Souza seguiu com os treinos e até participou, em maio de 2011, da Comrades, prova de quase 90 km na África do Sul, que completou em 11h00min22.
Depois de a poeira baixar, enfim resolveu procurar um tratamento. “Inicialmente, fiz uma terapia com anti-inflamatórios. Mas a dor continuava. No final do ano, fiz umas 40 sessões de fisioterapia à base de choque e ultrassom.”
Mesmo assim, a dor não cedeu, o que fez com que Souza desistisse do tratamento. Em lugar disso, voltou a treinar forte: em janeiro deste ano, iniciou a preparação para mais uma ultramaratona (prova mais longas que a maratona) na África do Sul.
“Mas o meu tendão estava ali, presente. Em março passado, fiz outro tipo de fisioterapia com ultrassom (placas quentes) e laser. Mas a dor ainda persistia”, conta ele, que avalia: “Acho que era por causa do treinamento, pois eu não parei de correr”.
Na prova sul-africana, não sentiu dor, fechando a Comrades 2012 em 10h40. Ao voltar para o Brasil, não deu descanso: começou a treinar para a maratona do Rio, realizada em 8 de julho. Resultado: o outro calcanhar também começou a sofrer. “Mesmo com os dois tendões doendo, continuei os treinos até a maratona”, diz.
Depois da prova, decidiu suspender os treinos. “Parei por 63 dias, fiz umas 15 sessões de fisioterapia e também larguei: fiquei fazendo apenas exercícios para fortalecimento dos tendões.”
Começou a se sentir melhor e resolveu voltar aos treinos há pouco mais de 15 dias. “Ainda não está 100%, mas está bem melhor. Estou fazendo um novo tratamento fisioterápico”, diz Souza, que pratica corrida há três anos, já fez nove maratonas e quatro ultramaratonas.
‘Sinto desconforto, mas não quero deixar de correr’, diz jornalista de 45 anos
Já dura quase um ano a dor na
planta do pé de Ricardo Capriotti, jornalista de 45 anos, corredor há 13.
Seu convívio com a fascite plantar começou em novembro do ano passado, com uma dor em forma de pontada na sola do pé, principalmente após treinos e provas.
Ricardo procurou um médico conhecido, que havia lhe dito que a terapia por ondas de choque apresentava bons resultados. “Eu já tinha usado esse tratamento para uma tendinite patelar [no joelho] e uma bursite trocantérica [na região do quadril].”
A primeira sessão de ondas de choque foi feita em dezembro do ano passado.
O jornalista Ricardo Capriotti, que
tem lesão crônica no pé, se alonga em parque de São Paulo. Foto: Lucas
Lima/Folhapress
“Parei por seis semanas com os treinos e as corridas, fazia apenas bicicleta com a ponta dos pés, na academia. Retornei à consulta em janeiro, e a dor persistia. Passei por mais uma sessão de ondas de choque e mais seis semanas sem atividade física, apenas a bike. Voltei ao consultório e a dor continuava.”
O médico resolveu, então, aplicar uma infiltração com corticoide. A dor sumiu imediatamente e a recomendação foi esperar 15 dias e retornar aos treinos gradativamente. “Foi o que fiz.”
Aproximadamente dois meses após a infiltração, Ricardo sentiu uma fisgada muito forte na sola do pé.
“Tentei continuar correndo, mas a dor não permitiu. Abortei o treino e fui procurar um ortopedista especialista em pé.” Após a ressonância magnética, o diagnóstico: rompimento da fáscia plantar.
O rompimento foi exatamente no local onde se costuma fazer a cirurgia em casos crônicos da doença e o prognóstico era positivo.
“Durante 40 dias passei por sessões de fisioterapia e acupuntura e então fui autorizado a retornar aos treinos.”
Desde agosto, Ricardo corre três vezes por semana e faz exercícios para fortalecer o “core” (músculos que sustentam a bacia, a pélvis e a coluna lombar), a panturrilha e os pés, além de musculação e alongamento.
“Ainda sinto desconforto, especialmente quando acordo pela manhã e coloco o pé no chão, mas não quero parar. Cansei de ficar longos períodos inativo e depois sofrer no retorno.”
Economista engordou 12 quilos depois que parou de correr
As lesões mudaram a vida do
economista Angel Zaccaro Conesa, que há mais de 20 anos se dedica às corridas:
“Fiquei sedentário”, exagera.
A dor no calcanhar direito apareceu há uns dez meses. Conesa achou que fosse uma torção e decidiu descansar. Depois de três meses parado, procurou um médico, que diagnosticou fascite plantar.
O tratamento foi conservador: alongamento, exercícios para a musculatura e suspensão dos treinos.
Os resultados demoraram a aparecer, e o economista de 58 anos só agora começa a voltar à atividade esportiva.
“A fascite surgiu depois de eu ter tido uma tendinite de quadril. Fiquei 14 meses sem correr e engordei mais de 12 quilos”, contabiliza.
Agora, no retorno, pretende ir com calma, “passito a passito”, como diz.
Depoimento: “Ficar parado dói mais do que a própria lesão”
Alexandre Nobeschi:
“Sinto falta da corrida e de tudo o que ela proporciona. E isso dói mais que a lesão. Os corredores estão aí para não me deixarem mentir.
Acho até que o Datafolha deveria fazer uma pesquisa com a seguinte pergunta: corredor, o que você faz quando está com dor?
a) Para de correr
b) Procura um médico e para de correr
c) Faz gelo, toma anti-inflamatórios e para de correr
d) Continua treinando
Não tenho dúvidas de que a letra “dê” prevaleceria. Bom, ao menos foi a resposta que dei quando a dor sugeria que havia algo errado.
Na primeira delas, uma canelite ignorada virou uma fratura por estresse.
No ano passado, numa meia maratona, “quebrei” no km 17. O joelho esquerdo não aguentou e completei a prova como um saci.
Evitei o médico, descansei por uma semana e voltei de mansinho. Não durou muito. Tive de buscar um especialista, e o exame indicou uma tendinite patelar e uma inflamação grave.
No estaleiro desde abril, meus tênis só me acompanham na fisioterapia”.
Por Rodolfo Lucena
Folha de São Paulo